"O amor aparece quando menos esperamos." "Cuide do jardim e as borboletas virão". O que estas frases têm em comum? Todas elas são clichês românticos e pouco ou nada ajudam a neurodivergentes que passaram por uma rejeição amorosa. Entenda mais nos exemplos que mostrarei a seguir.
"O amor aparece quando menos esperamos."
Esta frase é muito usada por neurotípicos, que, querendo consolar a nós, neurodiversos, usam esta frase para tentar nos acalmar. Esta fala pode ser usada por eles após uma rejeição amorosa por parte de um amor platônico (que, por sinal, é muito recorrente entre neuroatípicos) ou após um rompimento propriamente dito. O problema desta fala é que ela dá a entender que o amor satisfatório (e correspondido) entre duas pessoas é algo que vem com o tempo, quando estamos distraídos. Na prática, seria como se o amor satisfatório, recíproco, etc., viesse em um momento da vida em que sequer estamos esperando por um relacionamento, daí por uma obra do acaso a pessoa certa aparece.
Resumidamente, esta fala coloca a "culpa" pelo fim do relacionamento (caso estejamos em um) ou da rejeição (em caso de amores platônicos) na nossa ansiedade em estar com alguém. Acontece que esta lógica só faz sentido quando o neurodivergente já teve pelo menos um relacionamento correspondido. Do contrário, não passa de mais uma frase sem qualquer sentido.
Para um atípico que já teve outros relacionamentos mal sucedidos, pode ser que, realmente, a incompatibilidade possa ter sido a causadora do fim da relação. Neste caso, a depender do histórico de encontros, relacionamentos (mesmo os casuais), pode-se até arriscar esta fala. Mas ela definitivamente não vale para quem, assim como eu, até hoje só teve amores platônicos. A incompatibilidade é justamente o assunto que trataremos no próximo tópico.
"Não era para ser. O que for para ser seu, assim será."
Esta fala ataca o efeito dos acontecimentos (rejeição, no caso de amor platônico, ou rompimento, no caso de um sentimento recíproco), mas não a causa. Basicamente, esta fala culpa o insucesso do relacionamento (ou a rejeição, em caso de paixão platônica) na simples falta de reciprocidade do outro. A mensagem que esta fala passa é: "Se tal pessoa realmente gostasse de você, ela estaria com você. Quem quer ficar com você fica."
O problema é que, por trás desta rejeição, podem se encontrar problemas como dificuldades do neurodiverso na interação social, etc., que são simplesmente negligenciadas, dando lugar a uma frase clichê vazia. Muitas vezes, o outro não nos corresponde porque o nosso jeito peculiar, por sermos neurodiversos, o repele. Quando muito, a pessoa quer apenas a nossa amizade, o que nos faz sofrer ainda mais.
Para neurodivergentes que nunca tiveram um relacionamento (como eu), este tipo de fala nada mais é do que uma forma de os neurotípicos buscarem uma saída fácil para que não tenham que pensar nos motivos pelos quais a pessoa não nos quis. Será que foi por causa dos nossos movimentos repetitivos? Será que foi por causa dos nossos hiperfocos, dos quais falamos por tempo demais e isso incomodou a pessoa? Esta frase clichê "bonitinha", muitas vezes, é uma forma de os neurotípicos se recusarem a pensar nas questões excludentes que levaram à rejeição e tentar amenizar a situação, alegando que o "não" foi fruto da mera falta de reciprocidade.
"Ninguém é obrigado a corresponder aos sentimentos de ninguém."
Esta fala dá a entender que o motivo da rejeição ou do rompimento foi o simples fato de a pessoa ter exercido o seu livre arbítrio e escolhido não estar com você (ou terminar a relação entre vocês, se vocês estavam juntos antes).
Sim, uma pessoa tem o direito de escolher não ficar com outra, mas, muitas vezes, tratando-se de neurodiversos, a "escolha" da pessoa é orientada com base nas nossas características neurodivergentes, que a pessoa interpretou a seu modo, passando a julgar que seria melhor se afastar de nós. A pessoa pode não ter nos escolhido porque falamos demais do nosso hiperfoco, porque fazemos movimentos regulatórios que ela acha "esquisitos", porque não tivemos conexão emocional (da maneira neurotípica), etc.
Se nos orientarmos apenas pelo fato de que ninguém é obrigado a nos corresponder, não é preciso pensar nos motivos que levaram a pessoa a não nos querer (incluindo capacitismo), não é?
"Talvez você não 'faça o tipo' da pessoa".
Esta fala dá a entender que fomos rejeitados (ou que houve o rompimento, em casos de relacionamentos recíprocos) porque não tínhamos o conjunto de características (físicas, intelectuais, de personalidade, etc.) que a outra pessoa buscava em nós.
Isto pode até ser verdade em casos de casais que terminaram, mas, para aqueles que, assim como eu, só tiveram amores platônicos, convenhamos: esta fala deixa implícito que o nosso jeito neurodiverso de ser "não faz o tipo" de alguém. Pode soar como um jeito "bonitinho" de dizer que não temos o perfil de parceiro afetivo que o outro busca, pelo simples fato de sermos como somos.
É um jeito "bonitinho" de dizer que só os neurotípicos "fazem o tipo" da outra pessoa, porque [supostamente falando] ninguém vai querer alguém como nós, com as nossas crises, os nossos movimentos repetitivos, a nossa rigidez de pensamento, etc.
"Cuide do jardim e as borboletas virão"
Esta é uma metáfora em que, teoricamente, você é o jardim e as coisas que você quer alcançar (sucesso profissional, reciprocidade romântica, etc.) são as borboletas. Num sentido mais literal, a frase soaria assim: "Cuide de si mesmo e mais oportunidades surgirão em diferentes aspectos da sua vida."
Esta fala dá a entender que você só não está com alguém (ou que a sua última relação terminou) porque você não se cuida como deveria. Isto incluiria o autocuidado nos âmbitos emocional, relacional etc. O problema desta fala é que ela ataca diretamente alguns pontos nossos, como, por exemplo, a disfunção executiva. Disfunção executiva, quando direcionada aos cuidados pessoais, pode facilmente ser confundida com desleixo.
Vamos a um exemplo prático. João tem 14 anos, está na puberdade e se apaixonou pela primeira vez. Após de declarar para a sua "crush" e ser rejeitado, ele ouve dos familiares esta malograda frase: "Cuide do jardim e as borboletas virão", ou seja, "cuide mais de si mesmo e as pessoas tenderão a se interessar mais em se relacionar com você". O problema é que, sob o viés neurotípico, este "autocuidado" inclui:
- Trabalhar em um emprego (geralmente formal) do qual não gosta, acordando cedo, pegando ônibus lotado, enfrentando trânsito congestionado, aguentando um chefe insuportável, "engolindo sapos", ganhando pouco, etc., e enfrentando um monte de situações que te sobrecarregam sensorialmente, socialmente, emocionalmente, etc., para ganhar experiência de trabalho, conhecer novas pessoas, se sustentar, parar de dar despesa para os pais ou cuidadores, ou sabe-se lá por quê;
- Passar a ter que puxar e manter assuntos sobre amenidades, que não te interessam nem um pouco, apenas para socializar, mas não ter reciprocidade neste gesto;
- Ingressar em algum curso, alguma faculdade, etc., mesmo que o modelo tradicional de ensino te cause imensa sobrecarga, com prazos, cobranças, etc.;
- Tocar e se deixar ser tocado fisicamente por todo tipo de pessoa do seu círculo social, com abraços, beijos, tapinhas nas costas, etc., mesmo sem ter nenhuma intimidade emocional com a pessoa para tal;
- Suprimir seus traços neurodiversos (movimentos repetitivos autorregulatórios, rigidez de pensamento, hiperfoco, seletividade alimentar, etc.) para se entrosar e ser socialmente aceito;
- Dentre outras inúmeras situações.
Muitas vezes, a sociedade neurotípica rotula como "autocuidado" situações que extrapolam os nossos limites sensoriais, sociais, emocionais, etc., enquanto neuroatípicos, sob o pretexto "bonitinho" de "autocuidado".
"Quando é amor, a outra pessoa nos ama e aceita do jeitinho como somos."
Esta é uma meia verdade perigosa. Por que meia verdade? Porque, por um lado, isto realmente procede: quando alguém nos ama verdadeiramente, a pessoa nos aceita, com o nosso jeito, nossas peculiaridades, etc. O problema é que, por trás desta fala "inocente", os neurotípicos dão a entender que precisamos mudar o nosso "jeito" de ser para termos mais chances de termos um amor correspondido. Isto incluiria, por exemplo:
- Suprimir movimentos repetitivos e autorregulatórios, para não ser visto como "doido";
- Suprimir a rigidez de pensamento, "engolindo" pessoas, coisas e/ou situações que são inaceitáveis para nós;
- Seguir uma série de regras de etiqueta neurotípicas, muitas delas completamente descabidas, como as "mentirinhas sociais";
- Abandonar ou camuflar gostos incomuns do ponto de vista neurotípico, para não sermos vistos como "esquisitos";
- Controlar a intensidade e/ou frequência com que se fala dos hiperfocos, para não incomodar os neurotípicos e sermos vistos como "chatos";
- Dentre outros exemplos.
E você, neurodiverso? Qual outra frase você a esta lista e por quê?
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